domingo, 8 de agosto de 2010

Por elas que reclamo: minhas crianças!

Quando olhava no espelho e não reconhecia a figura que, ali, se apresentava, me fez ter um questionamento: "de quem foi a culpa nesse processo de falta de identificação?". Hoje, não falo mais por mim que sou uma mulher negra e demorei em me reconhecer, numa sociedade preconceituosa. Mas, falo por minhas crianças[1] que param, diante do espelho, e questionam seus cabelos crespos, seu nariz não afilado, continuam se olhando, e querendo fazer parte de uma sociedade que insiste de forma cruel excluir o negro que foi e é parte fundamental para o processo da evolução da mesma.
Revestida de toda angústia que antes desvencilhada por mim para assim escrever um trabalho de conclusão do meu curso de Pedagogia, eu escrevo este texto e concordo com Carneiro quando afirma que "não há idade para afirmar a dignidade e capacidade de autonomia"(2006, p. 36). Mas novos questionamentos fazem parte de mim e um deles é: "Por que demorar em aproximar da criança aquilo que lhe pertence: sua história?".
Segundo Forquin (1993, p.14), “educação consiste em introduzir os membros das novas gerações no interior de um mundo que eles não conhecem e que eles deverão habitar durante certo tempo, antes de remetê-lo por sua vez como herança a seus sucessores”. A cultura para que continue viva é necessário que seja transmitida através das gerações e muito mais que isso, eu acredito que o ser humano também para permanecer vivo plenamente precisa saber sobre seu povo, seus heróis, suas músicas. Contudo os conteúdos passados, em sala de aula, não podem ser restringidos a isso, já que são apenas aspectos da cultura de um povo. E estes conteúdos não devem ter como molde a cultura branca, pois apesar desta ser a dominante, não é de pertencimento negro.
Sinto dificuldades para escrever sobre minha história, pois durante muito tempo me negaram as minhas raízes. 
Em alguns momentos, sinto que escrevo sobre um povo distante e que não faz parte de mim. Mas para ir adiante no meu aprendizado da vida, precisei tomar para mim tudo que me foi ofertado por "boa vontade" dos brancos. E apesar de não estar  na condição de escrava, me mantive numa situação que os meus passaram, ou seja,  " para os filhos de negros a unica possibilidade é o aprendizado do colonizador".(Munanga 2009, p. 35)
Munanga discursa em seu livro "Negritude- usos e sentidos" sobre o embranquecimento do negro como forma de inserção numa sociedade que não está disposta a tê-lo como parte integrante, mas insiste em usá-lo como mão de obra barata.
O embranquecimento afasta o negro da sua cultura e não o aproxima do branco, pois ele começa a assimilar a cultura branca, perde suas referências quanto negro e aceita como verdade aquilo que o colonizador sempre fez questão de afirmar: que negro é um ser inferior e para que sobreviva é necessário que seja retirado da sua terra como animal e domesticado para o trabalho braçal.
Os negros escolhendo brancas para terem relações afetivas ou sexuais, as negras transformando quimimicamente seus cabelos  são reflexos de uma sociedade discriminatória, em que formas de branqueamento tanto biológico quanto estético são utilizados para que a nossa historia, a essência do povo negro seja escondida, e os negros permaneçam alienados e ou a parte da sua cultura.
Não são os processos estéticos ou as relações humanas que me preocupam quanto educadora, mas perceber no olhar de uma criança negra total falta de reconhecimento nas historias contadas em sala de aula, pois estas falam de princesas 'brancas como a neve", loiras, os heróis  são brancos. São estas crianças que também fazem parte da frase " as crianças são o futuro da humanidade", mas antes de serem futuro precisam saber do seu passado e ter orgulho daquilo que lhe pertence.
O processo de adaptação para o negro, numa terra distante da sua de origem, não foi simples, todas as complexidades se faziam presentes. Ao negro coube adaptar-se à condição de escravo quando na sua terra era rei, rainha e tinham a liberdade garantida.
Enquanto escrevo este texto, não consigo perceber- talvez a palavra mais apropriada seja acreditar- como ainda há negros tão omissos as suas questões, permitindo que assim que nossas decisões sejam tomadas por outros.Não importa a cor da pele, seja branca, amarela, parda.Somos pretos então cabe a nós tomarmos nossas decisões. Então como me calar ou como se deixam calar por vozes que não entoam aquilo que quero dizer?
Eu quero a minha voz sendo ouvida, não importa a distância atingida, pois não é isso que, agora, é o fundamental. E não precisa que seja minha voz, pois quando os meus falam, eu ouço a minha dor sendo traduzida, meus anseios sendo buscados, a minha história ecoando pelos becos, favelas, cidades, por cada espaço. Então é por isso que escrevo para que minha voz não fique calada e para que minhas crianças que ainda não se descobriram enquanto negras tenham uma voz por elas, mas que logo elas também estarão falando por si e por outros pretos, pois isto também é de pertencimento do negro: lutar para que sua voz não seja ocultada, mas  ressoada enquanto busca seus objetivos de vida.



Referências:
CARNEIRO, Fernanda. Nossos passos vê de longe. In: WERNECK, Jurema. MENDOÇA, Maisa. WHITE, Evelyn C. (orgs.). O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe.2ª edição. Rio de Janeiro: Pallas/ Criola. 2006.
FERREIRA, Ricardo Franklin. Afro-descendente- Identidade em construção. São Paulo: EDUC; Rio de Janeiro: Pallas. 2009.
FORQUIN, Jean Claude. Escola e Cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Tradução de Guacira Lopes Louro. Porto Alegre: Artmed, 1993.
MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.


[1] Quando me refiro a minhas crianças é porque tomo para mim cada criança negra que se encontra numa escola de boa ou má qualidade independente de publica ou particular, mas que não ouve falar da sua historia, dos seus ancestrais.